sexta-feira, 31 de janeiro de 2025

Existe Pesquisa Inútil?: A Importância do Conhecimento de Base

     Atualmente vivemos uma discussão sobre o que vale a pena pesquisar e o que não vale, que não se deve gastar com ciência de base, apenas com o que se pode ciência aplicada, como se realmente existisse conhecimento útil e conhecimento inútil. Então vou dedicar esse post para contar aqui algumas histórias sobre conhecimento "inútil" que acabaram transformando o mundo, quando descobriram a sua utilidade anos/décadas depois. Vamos explorar, usando os exemplos da geometria não euclidiana e da álgebra booleana, como ideias puramente teóricas acabaram revolucionando a ciência.

Geometria não Euclidiana: quando o espaço se curvou

As 3 geometrias 
    Por séculos, a geometria plana de Euclides foi considerada a única geometria existente. Desde que Euclides escreveu sua obra prima, Os Elementos, cerca de 300 aC. ninguém questionou se poderia haver outro tipo de geometria que não fosse plana. Esse tipo de pensamento durou mais de 2000 anos, até que por volta do séc. XVII começaram a especular outros tipos de geometria, e tentar entender como seria. E no início era mesmo apenas uma atividade intelectual, sem nenhuma pretensão prática. Vários intelectuais começaram a explorar os diversos tipos de geometria chamadas de não euclidianas. O matemático russo Nicolai Lobatcheviski e o matemático húngaro Janos Bolyai estudaram de modo independente a geometria hiperbólica. E o matemático alemão Carl Gauss juntamente com seu discípulo Benhard Riemann (já citado anteriormente no post sobre o livro A Janela de Euclides) exploraram a geometria esférica. 

Gauss aprovando o blog
    Em 1854, numa palestra intitulada "Sobre as hipóteses que fundamentam a geometria", Benhard Riemann ampliou os horizontes da geometria ao propor uma abordagem generalizada, baseada em superfície curva, rompendo os limites impostos pela geometria plana de Euclides. Mais de 50 anos depois, em 1905, um jovem físico chamado Albert Einstein publica 4 artigos que revolucionaram a física, entre ele a famosa "Teoria da Relatividade Restrita", que seria a versão 1.0 da mais famosa ainda "Teoria da Relatividade Geral". Na Relatividade Restrita, Einstein introduz conceitos como Espaço-Tempo, velocidade constante da luz, dilatação de tempo e contração do espaço, e outros. Einsten queria unificar sua teoria com a teoria da Gravidade, mas levou 10 anos para conseguir isso, em sua teoria da Relatividade Geral, publicada em 1915. Nesse período de 10 anos em que ele ficou tentando incorporar a gravidade na teoria da relatividade, ele percebeu que seria possível considerando que a gravidade é o resultado da curvatura do espaço-tempo causado por uma massa muito grande, como uma estrela ou o Sol. 
    Uma teoria só é confirmada se suas previsões são corretas, e para poder fazer as previsões Einstein precisava de uma matemática que fizesse o cálculo dos movimentos nesse espaço-tempo curvo. Apesar de Einstein ser um gênio da física, a matemática não era seu forte, e sempre que precisava ele pedia ajuda ao seu colega da Politécnica de Zurique, Marcel Grossmann, desempenhando um papel crucial no desenvolvimento da Teoria da Relatividade Geral. Enquanto Einstein tinha ideia inovadoras sobre a física, Grossmann ajudou na formalização matemática da teoria. Felizmente Grossmann não precisou desenvolver uma geometria nova para calcular movimentos curvos no espaço-tempo, pois Riemann e outros já haviam feito esse trabalho há mais de 50 anos atrás. E as previsões matemáticas da Teoria de Relatividade Geral foram comprovadas belissimamente durante um eclipse na cidade de Sobral, no Ceará, sendo a base de inúmera tecnologias atuais, como GPS.

Álgebra Booleana: a lógica por trás dos computadores

George Boole
    A segunda história é sobre o matemático, filósofo e lógico inglês George Boole e sua Álgebra Booleana. Em 1854 (mera coincidência) Boole publicou o livro intitulado "Uma investigação sobre as leis do pensamento", onde ele apresentou sua lógica, propondo como os raciocínios lógicos poderiam ser representados por operações algébricas. A álgebra booleana reduz problemas de lógica a operações simples com variáveis que assumem apenas dois valores: 1 (verdadeiro) e 0 (falso). Conectando a lógica aristotélica com a álgebra, Boole transformou o estudo da lógica em um campo matemático rigoroso. E novamente aqui, foi puramente pelo desafio intelectual que Boole realizou essa tarefa, e dessa vez levaria mais de 50 anos para que a álgebra desenvolvida por Boole ganhasse uma aplicação prática. E seria na eletrônica digital onde a álgebra booleana ganharia espaço, e George Boole nem tinha ideia disso.

    Em 1830, Michael Faraday projetou o primeiro Relé, que é um interruptor eletromecânico, ou seja, é uma chave que liga e desliga usando eletricidade e magnetismo (um emprego muito simples e comum do relé é na geladeira, onde é conectado ao termostato, ligando e desligando a geladeira conforma a temperatura desejada). Mas somente no início do século XX que os relés começaram a ser empregados como circuitos lógicos para implementar as portas lógicas baseadas nos princípios da álgebra Booleana. Na década de 1920 os relés foram gradualmente substituídos pelas válvulas termiônicas, por serem amis rápidos e confiáveis. Em 1938 o pai da Teoria da Informação Claude Shannon foi o primeiro a formalizar o vínculo entre álgebra booleana e circuitos lógicos, e em 1947 foi inventado o transistor, por John Bardeen, Walter Bratain e Willian Shockley, revolucionando a eletrônica, além de serem mais rápidos e confiáveis ainda, também permitiam a miniaturização, abrindo caminho para os computadores modernos.

Número imaginário: do absurdo à realidade

    Por séculos, o problema da raiz quadrada negativa (√-1) incomodou os matemáticos. Já que não existia um número real que multiplicado por ele mesmo daria um número negativo, esse problema foi considerado impossível, até que por volta de 1500 os matemático começaram a explorar soluções para equações cúbicas, sim aquelas que deixam todos alunos de cabelo em pé. Um desses caras foi o matemático italiano Girolamo Cardamo, que ao tentar resolver algumas dessas equações percebeu que apareciam raiz quadrada de um número negativo. Como não fazia muito sentido resolveram deixar pra lá e ignoraram os resultados, chamando-os de fictícios ou impossíveis.

Leonhard Euller

    Já no século XVII, o filósofo e matemático francês René Descartes deu o nome de "imaginário" para esses números. Ele usou esse termo de forma pejorativa, como se os números fossem apenas invenção da nossa cabeça. Já no século seguinte o matemático suíço Leonhard Euler entrou em cena e decidiu levar esses números a sério. Ele criou o símbolo i para representar a raiz quadrada de -1, ou seja, i = √-1. Com isso os números imaginários ganharam uma identidade própria e começaram a ser utilizados em cálculos complexos. Euler também descobriu uma relação incrível entre números imaginários e funções trigonométricas, conhecida como Fórmula de Euler: 

eiπ+1=0
e^{i\pi} + 1 = 0
essa é considerada uma das fórmulas mais belas da matemática pois conecta cinco números fundamentais: 0, 1, e, i e 
π.

    No início de 1800 o grande matemático alemão Carl Gauss, já citado anteriormente, deu um passo além. Ele percebeu que os números imaginários não eram apenas um truque matemático, mas sim uma poderosíssima ferramenta. Ele os integrou com o sistema numérico, criando os números complexos, que combinam uma parte real com uma parte imaginária, do tipo a + bi. 

    Com o tempo encontraram inúmeras aplicações para os números imaginários e complexos. Por exemplo, durante o séc. XVIII quando começaram a desenvolver os primeiros estudos da eletricidade e dos circuitos elétricos, várias das fórmulas desenvolvidas na época, como a famosa lei de Ohm (V = R.I) funcionavam muito bem, e de maneira simples quando se tratava de corrente contínua utilizando os números reais. Porém quando começaram a desenvolver os circuitos de corrente alternada, no fim do séc. XIX, os números reais não conseguiam fazer isso de maneira simples, já que os valores de corrente e tensão varia com o tempo. E é aí que os números complexos entram em jogo, onde a parte real do par complexo corresponde o valor de pico (mais alto) da corrente/tensão, e a parte imaginária representa a fase (oscilação) do mesmo, podendo ser aplicado nas mesmas fórmulas desenvolvidas anteriormente.

    Há também aplicações na física quântica para descrever o movimento das partículas subatômicas, em processamento de sinais em tecnologias Wi-Fi e GPS e na computação gráfica para criar efeitos visuais e animações. Na próxima vez que alguém disser que uma ideia é "inútil", terá pelos menos 3 exemplos mostrando ao contrário. A ciência básica não é um luxo, é a semente da inovação. E como vimos, as vezes é necessários esperar décadas para colher seus frutos. Afinal, qual é a ideia doida de hoje que será revolucionária amanhã?