"A música é uma ciência que necessita possuir um estatuto definido. Suas regras devem ser extraídas de um princípio claro, inconcebível sem o auxilio da matemática. Apesar de toda a experiência que eu posa ter em música por associar-me a ela por tanto tempo, devo confessar que somente com auxílio ma matemática, minhas idéias tornaram-se claras e a luz substituiu uma escuridão da qual eu não estava ciente."Rameau, 1722
A relação entre a música e a matemática é muita antiga. Na Grécia antiga, com as experiências de sábios como Pitágoras e Arquitas, até os séculos XVIII, com cientistas musicais tais como Saveur, Rameau, Daniel Bernoulli, Euler, Ohm, Fourier e Helmholtz, fortes contribuintes na explicação racional de fenômenos matemático-musicais como o Temperamento e Séries Harmônicas. Embora essa relação provavelmente fosse conhecida superficialmente antes dos pitagóricos, estes foram os primeiros a registrar e explorar essa relação. Os pitagóricos foram os únicos até Aristóteles a fundamentar cientificamente a música, começando a desenvolvê-la e tornando-se aqueles mais preocupados por este assunto. Como principais teóricos musicais dessa escola são Pitágoras e Filolaus no período pré-clássico e Arquitas, Aristoxeno e Aristóteles no período clássico.
Provavelmente inventado por Pitágoras, o monocórdio é um instrumento composto por uma única corda (berimbau???) estendida entre dois cavaletes fixos sobre uma prancha ou mesa possuindo ainda um cavalete móvel colocado sob a corda para dividi-la em dois. A princípio, seus experimentos evidenciavam relações entre comprimento da corda estendida e a altura musical do som emitido quando tocada (não confundir altura musical com altura do volume - altura musical é a variação entre altura dos sons graves, com frequência baixa e sons agudos, com frequência alta; e altura de volume é a variação da amplitude da onda, variando entre volume baixo e volume alto). Pitágoras buscava relações de comprimentos - razões de números inteiros - que produzissem determinados intervalos sonoros. Em seu experimento, observou que pressionando um ponto situado a 3/4 do comprimento da corda em relação a sua extremidade e tocando a corda ouvia-se uma quarta acima do tom emitido pela corda inteira. Analogamente, exercida a pressão a 2/3 do tamanho ouvia-se uma quinta acima e a 1/2 obitinha-se a oitava do som original.
A descoberta da relação entre razão de números inteiros (1/2, 2/3 e 3/4) e tons musicais mostrou-se significativa naquela ocasião, gerando uma dúvida fundamental para o pensador de Samos: Por que as consonâncias musicais subjazem razões de pequenos números inteiros? Qual a causa e qual o efeito? Pitágoras justificou a subjacência de pequenos números inteiros às consonâncias pelo fato de que os números 1, 2, 3 e 4, envolvidos nas frações mencionadas, geravam toda a perfeição. Os pitagóricos consideravam o número quatro (primeiro quadrado par) origem de todo o universo, representando a matéria em quatro elementos. Com essas razões, poderíamos por exemplo, partindo de um fá e subindo uma quinta (2/3) obteremos um dó, que por sua vez subindo outra quinta teremos um sol, repetindo teremos um ré (oitava acima), seguido de lá, mi e si, formando a sequência fá, dó, sol, ré, lá, mi e si, e remanejando apresenta-se dó, ré, mi, fá sol, lá e si. Tal relação de comprimentos 2/3 chama-se gama pitagórica. Assim obtém-se as relações 8/9 com ré, 16/27 com lá, 64/81 com mi e 128/243 com si, formando os intervalos de tom, tom, semitom, tom, tom, tom e semitom temperados. Partindo da nota dó e construindo a escala pelo percurso de quintas, o ciclos fecha-se formando a sequência dó, sol, ré, lá, mi, si, fá#, dó#, sol#, ré#, lá#, fá e dó. Porém estas notas correspondem, na gama temperada, a aproximações dos sons de fato alcançados.
Um dos mais importantes teóricos musicais do período clássico, Arquitas de Tarento (430-360 a.C.) colaborou de maneira significativa não somente para o desenvolvimento da música mas para o desvendar de seus fundamentos racionais. Escreveu trabalhos científicos relacionados ao cálculos de intervalos musicais e proporções musicais. Entre suas contribuições, há evidências que possivelmente modificou a antiga denominação da média subcontrária para média harmônica, provavelmente pelo fato do comprimento relativo ao intervalo de quinta (2/3), de grande valor harmônico para os gregos, ser a média subcontrária entre o comprimento da corda solta e aquele correspondente à oitava, intervalo consonante fundamental. Arquitas também foi o primeiro pensador a associar altura musical à frequência pela comparação de sons emitidos por ventos fortes e fracos e deslocando o foco de atenções da fonte de emissão de som para o ar, antecipando em 2000 anos o estudo da Acústica (propriedades física do som) por parte de Galileu no séc. XVII.
O renascimento teve um profundo papel no estudo da Música com ciência, seguido de alguns aprofundamentos importantes neste período na compreensão das idéias de Série Harmônica e Temperamento. Na parte musical o Renascimento caracteriza-se pela evolução da polifonia - superposição de melodias - e consequentemente desenvolvimento da harmonia. Caracterizada por processos de matematização, experimentação e mecanização, a Revolução Científica nos séc XVI e XVII propiciou a emergência de interpretações e argumentações inovadoras. Realizando trabalhos matemáticos concernentes a esta área em seu tratado Música Teórica, Ludovico Fogliane (1470-1539) forneceu subsídios para que Gioseffe Zarlino (1517-1590) organizasse em sua obra Inztituzioni Armonique (1558) a base científico-cultural em toda Europa durante dois séculos. Modificando substancialmente a concepção pitagórica, Galileu Galilei escreveu em 1638 que nem o comprimento, nem a tensão e nem a densidade linear de cordas apresentava-se como razão direta e imediata subjacente a intervalos musicais, mas razões dos números de vibrações e impactos de ondas sonoras que atingiam o tímpano. Considerando o som que alcaçava o ouvido invés do objeto vibrante que produzia, Galileu verificou que a altura musical relacionava-se diretamente à frequência registrando rastros de arranhões desenhados numa placa metálica provenientes de uma haste vibrante solidária a uma membrana que recebia vibrações sonoras. A percepção por parte de Galileu no séc. XVII de que a sensação de altura musical relaciona-se diretamente ao conceito de frequência marca o início da física da música em sua concepção atual.
O padre e matemático francês Marin Mersenne (1588-1648) que apresenta-se como primeiro teórico a fundamentar o estudo de harmonia no fenômeno da ressonância. Trocando correpondência assídua com René Descartes (1596-1650) Mersenne discutiu problemas e aspectos pouco claros do Compendium Musicae escrito pelo filósofo francês em 1618.Constatando a possibilidade de acompanhar visualmente os movimentos vibratórios das cordas, o matemática francês utilizava o próprio pulso com intuito de marcar o tempo necessário para completar um determinado número de ciclos. Variando os comprimentos e tensões, Mersenne verificou empiricamente que para frequências visualizáveis, a vibração de um fio esticado era inversamente proporcional ao comprimento da corda se sua tensão fosse constante; diretamente proporcional à raiz quadrada da tensão se o comprimento fosse constante e inversamente proporcional à raiz quadrada da massa por unidade de comprimento, para fios diferentes de mesmo comprimento e tensão, chegando na fórmula descrita:
onde f é a frequência, l o comprimento da corda, n uma constante inteira, T a tensão que a corda encontra-se sujeita e p a densidade linear da corda. A partir de tal descoberta, a natureza das consonâncias é retomada à luz das leis de corpos vibrantes. A fórmula citada implica em reorganizações de Mersenne a respeito de médias harmônicas e aritméticas em música. Para o matemático francês, a média aritmética possuía caráter superior à harmônica, pois tomando números proporcionais às vibrações - causas primeiras do som - a quinta na posição inferior resultava na média aritmética dos números que caracterizam a oitava.
O matemático, astrônomo e filósofo nascido em Wiel, Johannes Kepler (1571-1630) apresentou, além de preciosos legados em física tais como as leis dos movimentos dos planetas, fortes subsídios para a ciência musical. Com o falecimento de Tycho Brahe em 1601, Kepler assumiu seu posto trabalhando na organização de calendários e na predição de eclipses como matemático e astrônomo da corte do imperador Rudolfo II em Praga até 1612, estabelecendo-se mais tarde em Linz, onde concluiu e publicou seu Harmonices Mundi em 1619. Principal contribuição do astrônomo alemão à teoria musical, essa obra compõe-se de 5 livros - os dois primeiros relacionam a origem das 7 harmonias com arquétipos inerentes à geometria e à Deus; o livro 3 apresenta um tratado sobre consonância e dissonância, intervalos, modos, melodia e notação; o livro 4 discorre sobre astrologia enquanto o volume 5 aborda a Harmonia das Esferas. O cientista alemão verificou empiricamente a existência de oito consonâncias: uníssono (1/1), oitava (1/2), quinta (2/3), quarta (3/4), terça maior (4/5), terça menor (5/6), sexta maior (3/5) e sexta menor (5/8). Dentre suas contribuições em música, Kepler defendia a existência de escalas musicais peculiares a cada planeta, que soavam como se estes cantassem simples melodias, relacionando para isso velocidades dos planetas às frequências emitidas.
O compositor e teórico francês, Jean Philippe Rameau (1683-1764) iniciou seus estudos com seu pai que era organista profissional, frequentando durante a infância uma escola de jesuítas e cumprindo mais tarde um pequeno período de estudos na Itália. Em 1702, tornou-se maitre de musique da Catedral de Avignon, transferindo-se nesse mesmo ano para Catedral de Clermont e tornando-se em 1706 organista do colégio jesuíta em Paris. Em 1722, supervisionou a publicação do seu Traité de l'Harmonie, obra em que apresenta uma nova teoria sobre relação entre o baixo e a harmonia, baseada em suas concepções das propriedades físicas do som.
O Traité de l'Harmonie compõe-se de 4 livros. O primeiro discorre sobre a relação entre relações harmônicas e proporções, o segundo trata da natureza e propriedades dos acordes e tudo que pode ser utilizado para se atingir a música perfeita, o terceiro e quarto livros estabelecem respectivamente princípios para composição e acompanhamento musicais. Somente o primeiro livro possui uma abordagem da música à luz da ciência. Segundo Rameau, a música é a ciência dos sons, portanto o som é principal matéria da música. Dividindo esta arte/ciência em harmonia e melodia, o teórico francês subordinou esta última à primeira, admitindo que o conhecimento de harmonia é suficiente para a compreensão completa das propriedades da música. Estabelecendo uma relação biunívoca entre som e tamanho da corda, o teórico afirmou que cada corda contém em si mesma todas as outras menores que elas, mas não aquelas que são maiores; portanto os sons agudos estão contidos em sons graves, porém os sons graves não estão contidos nos agudos.
Assim como Zarlino e Descartes, Rameau obteve os intervalos consonantes dividindo a corda em até 6 partes, afirmando que às consonâncias, subjaziam números consecutivos e que a ordem de tais números determinava a ordem e perfeição das consonâncias. Segundo tal critério, a oitava - 1:2 possuia caráter mais consonante que a quinta - 2:3 - que por sua vez, apresentava-se mais consonante que a quarta - 3:4 - e assim por diante. Esta afirmação de Rameau mostrava-se ineficaz, uma vez que a sexta maior - 3:5 - além de não ser produzida por números consecutivos, não precedia a terça maior - 4:5 - nem a terça menor - 5:6.
Segue abaixo a tabela dos intervalos músicais e as razões matemáticas:
Intervalo - Razão - Nota (considerando Dó como a corda inteira)
Primeira justa - 1 Corda - Dó
Segunda menor - 128/135 - Dó# ou Réb
Segunda maior - 8/9 - Ré
Terça menor - 5/6 - Ré# ou Mib
Terça maior - 4/5 - Mi
Quarta justa - 3/4 - Fá
Quarta aumentada - 32/45 - Fá# ou Solb
Quinta justa - 2/3 - Sol
Sexta menor - 5/8 - Sol# ou Láb
Sexta maior - 16/27 - Lá
Sétima menor - 5/9 - Lá# ou Sib
Sétima maior - 8/15 - Si
Oitava justa - 1/2 - Dó (1 oitava acima)
Nenhum comentário:
Postar um comentário